quinta-feira, 10 de novembro de 2022

[Resenha] Terra Papagalli

Em tempos de incerteza no Brasil e de como as instituições estão cada vez mais degeneradas, é impossível não lembrar que, em tempos de crise, vale mais o afiado canino que a aguda filosofia... ao menos foi isso que aprendi com o primeiro  e quem sabe único  rei do Brasil.

Chegando ao Brasil na nau de Pedro Álvares Cabral, Fernandes e outros degredados são largados por aqui, para que aprendam a língua dos nativos e explorem o lugar. Em pouco tempo, se torna o primeiro rei da Terra dos Papagaios, digo, do Brasil.

Terra Papagalli, dos autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, narra as aventuras de Cosme Fernandes em terras brasileiras. Cosme, também conhecido pela alcunha de "Bacharel da Cananéia", foi um dos degredados que aqui chegaram nos primeiros anos do descobrimento. Os autores recontam episódios da nossa história e inventam outros, no caso, é aquela boa mistura de fatos históricos com ficção que resultam numa narrativa crítica e divertida – inclusive, é uma das obras que mais gosto.

Aconselho, depois de finalizada a leitura do livro, que pesquisar sobre a figura de Cosme Fernandes Pessoa. Alguns historiadores acreditam que ele chegou ao Brasil antes mesmo de Cabral em uma expedição não oficial, então foi deixado em terras tupiniquins, longe da perseguição da coroa portuguesa contra os judeus, assim como outros degredados.

Mas, voltando ao livro, de acordo com as experiências que vai adquirindo, Fernandes cria dez regras essenciais para se conseguir viver bem por essas terras, no caso, são dez mandamentos "Para bem viver na Terra dos Papagaios", que na verdade traduzem o nosso "jeitinho brasileiro". Antes de avançar no texto, recomendo como trilha essa música (clique aqui).

Primeiro Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Na Terra dos Papagaios é preciso saber dar presentes com generosidade e sem parcimônia, porque os gentios que lá vivem encantam-se com qualquer coisa, trocando sua amizade por um guizo e sua alma por umas contas.

Segundo Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Disso que vos contei acima, acho que se pode tirar mais um aprendizado das usanças que tem essa gente e é isto que, quando aparecer alguma dificuldade, mesmo que seja de simples solução, é preciso fazer alarde, espetáculo e pompa, pois nesta terra mais vale o colorido do vidro que a virtude do remédio.

Terceiro Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

As gentes da Terra dos Papagaios são muito crentes e de fácil convencimento. Por isso, têm em alta conta os feiticeiros, os falsos profetas e vai a coisa a tanto que não há patranheiro que lá não enriqueça e prospere. E assim é, senhor, que por serem tão crédulos aqueles gentios, pode-se-lhes mentir sem parcimônia nem medo de castigo.

Quarto Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

É aquela terra um lugar onde tudo está à venda e não há nada que não se possa comprar, seja água ou madeira, cocos ou macacos. Mas o que mais lá se vende são homens, que trocam-se por qualquer mercadoria e são comprados com as mais diversas moedas.

Quinto Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Desde o primeiro, são os funcionários daquela terra um tanto madraços e preguiçosos, e, se na frente de seus superiores parecem retos, quando esses lhes dão as costas, revelam-se muito astutos e só nos atendem se lhes damos algo em troca. Portanto, se fordes para lá, senhor conde, não se esqueça de ser generoso com eles, pois lá as portas não são abertas com chaves de ferro, mas com moedas de prata.

Sexto Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Naquela terra as barganhas fazem muito sucesso e não há quem resista a um pequeno regado. Por isso, é preciso dar sempre um afago aos que podem comprar, pois entre dois mercadores, naquela terra não se escolhe o mais honesto, mas o que oferece mais mimos.

Sétimo Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Naquele pedaço de mundo, senhor conde, não se deve confiar em ninguém, pois se no sábado nos juram eterna fidelidade, no domingo nos enfiam uma espada pela garganta. A verdade é que lá tudo se rege pela conveniência e, sendo preciso, troca-se de bandeira como as mulheres trocam de panos em dias de regra.

Oitavo Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Na terra que se chama dos Papagaios, cada um cuida de si e Deus que cuide de todos, pois pouco se faz por um irmão, nada por um primo e menos que coisa nenhuma por um amigo, de modo que cada um só quer saber do seu nariz e, se alguém faz algo por outrem, é a troco de paga ou medo.

Nono Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

Naquelas paragens, quando se alevantam alguns, o melhor modo de quietá-los é dar-lhes emprego ou título, porque os daquela terra muito prezam serem chamados de senhores e não há um que não troque honradez por honraria.

Décimo Mandamento para bem viver na Terra dos Papagaios

E o resumo de meu entendimento é que naquela terra de fomes tantas e lei tão pouca, quem não come é comido.

Esses mandamentos estão na carta enviada por Cosme Fernandes ao Conde de Ourique, datada, ficcionalmente, em 1535.


Como eu disse no início do texto, em tempos de incertezas provocadas por instituições deveriam garantir minimamente alguma segurança jurídica e assim uma certa estabilidade na sociedade, foi impossível não lembrar da incrível aventura de Cosme Fernandes, o primeiro rei do Brasil. E para finalizar, transcrevo o prefácio do livro:

"Quando larguei aquele rapazote nas praias da Ilha de Vera Cruz, digo, da Terra de Santa Cruz, digo, do Brasil, nunca poderia pensar que ele teria o destino que teve, ou seja, que se transformaria um rei, que teria tantas mulheres, que mataria tantos homens, que possuiria tantas moedas, que viveria tantas aventuras. Na verdade, meu palpite era que ele morreria dali a uns dias, certamente devorado por selvagens antropófagos. Mas, como verão os que lerem este livro, as coisas não se deram exatamente assim. Muito pelo contrário. E, se errei minhas previsões quanto ao jovem Cosme Fernandes, hoje mais conhecido nos livros de história pela alcunha de Bacharel da Cananéia, errei ainda mais nas minhas previsões sobre a Terra Papagalli, digo, o Brasil, que achei ser um novo paraíso. Quantos erros, meu Deus! Bem mereço estar no inferno.", Pedro Álvares Cabral – psicografado.

Bem-vindo à Terra Papagalli!

Um comentário:

  1. Fiquei curioso por um resumo maior (não por ler o livro em si kkkkk)

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